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Uma jangada no mar… relato de Mariana

Nos dias 26, 27 e 28 de janeiro de 2023, a equipe envolvida na preparação do III Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras se reuniu em Salvador, bem no Pelourinho (Convento de São Francisco), para um primeiro encontro presencial de aprofundamento da vivência do grupo e para organização do evento, que acontecerá em 2024.

Logo em seguida, eu (Mariana) e João do Vale fomos para a Jornada Nacional de Agroecologia, organizada pela Teia dos Povos.

Este texto gira em torno desses dois movimentos.

A sensação é de que no encontro de preparação do Enjel estávamos vislumbrando aquilo que dias depois viveríamos. No convento, tudo girou em torno das águas. Águas doces, águas salgadas, as águas de onde viemos, os movimentos, o colo da grande mãe!

No Quilombo de Conceição de Salinas, o grande encontro com as águas se deu ainda mais profundamente.

Logo na chegada, ficou muito clara a importância de o Enjel acontecer em um território de luta e resistência. Quanto mais conectados estivermos a esse território que nos recebe, quanto mais atentos ao Bem Viver, mais se farão presentes as urgências da vida. Assim foi. Logo no primeiro dia, a abertura não aconteceu. Três ônibus estavam presos em uma manifestação no caminho. À noite, foram liberados. Sob uma condição muito clara. A Teia dos Povos precisava reforçar a resistência na manifestação.nnFoi muito bonito entender e viver junto o Bem Viver do povo de luta, que sabe de sua capacidade de organização e força. Mestre Cobra Mansa (que acabo de descobrir Caxiense!) chegou enquanto conversávamos com mestre Joelson (MST/Bahia). Junto com ele, estavam o irmão do rapaz que tinha sido assassinado (por isso a manifestação) e um companheiro – liderança do território vizinho, Encarnação.

O irmão da vítima explicou o fato. Seu irmão foi buscar satisfação para a violência sofrida pela irmã deles, por parte do dono do mercado da região, e foi assassinado em praça pública, “na frente de todos, às 21h30”. A manifestação pedia a prisão do assassino (foragido naquele momento) e a liberação do corpo da vítima, há dias no necrotério que não tinha funcionário para liberação.nnO Bem Viver é essa resposta sempre falha das estruturas de poder. Sempre vinda do povo de luta, organizado.

Assim se fez. No outro dia de manhã, primeiro foram alguns representantes. Voltaram, mais tarde, contando da promessa de resposta de ação da polícia e da necessidade de que mais de nós se juntassem à luta. Na hora que a mensagem foi passada no microfone, uma fala muito marcante veio da cacique Nadia tupinambá. “Que os brancos se coloquem na linha de frente na manifestação”, se colocando no lugar desses que sempre ocuparam (e ocupam) as linhas de frente de extermínio.

Quando o nosso reforço chegou, foi forte demais. A comunidade sentiu o apoio e foi uma aprendizagem mútua e instantânea de lutas. Bem Viver. João do Vale contribuiu junto com outros companheiros na conversa com os policiais, no sentido de formalizá-la como advogado da causa. O diploma passou à frente e se fez urgente. Depois, ouvi dele o desejo de retorno para esse agir/lutar. A vida é movimento!

A polícia fez seu papel de tentar a todo momento desmobilizar, desmerecer, nos confrontar. Mas nos mantivemos firmes naquela tensão de tantas realidades distintas, até que a família o quisesse. Ficamos com a sensação de que a família pediu que saíssemos por receio da retaliação da polícia (eles estão no território, é a casa deles). Então saímos. Junto com a liberação do corpo! E também com um ar de esperança muito bonito naquele povo, que por algum momento não esteve sozinho e viu que há muitas pessoas indignadas com o que lhes é caro, saindo vitorioso. nnExistia uma organização muito atenta no evento com a qual também podemos aprender para o nosso III Enjel. O urgente se sobrepõe ao previamente organizado. A Bahia tem uma expressão para isso! Talvez não seja apenas baiana. Nordestina?! “Pronto”. Quando os horários se apertam e as saídas não estão claras, então surgem respostas em roda: “Proooonto”. Detalhe, estávamos em mais de MIL pessoas. Quase duas mil! A plenária não aconteceu no primeiro dia por conta da manifestação e dos ônibus presos. No segundo dia, precisamos nos unir à manifestação. E estava tudo certo. Nada estava perdido. Pelo contrário: Proooonto!

As mesas eram de uma riqueza inestimável. Como se fosse um “Enjel ao contrário”, um espaço concedido aos cristãos, oferecido pelos povos originários, pelo povo preto. Alguns eram cristãos também, verdade; mas havia uma diferença no fazer que vinha desse fato. Enquanto as mesas aconteciam, um pajé oferecia com todo carinho seus cuidados. Depois de seu toque senti meu coração cheio de alegria. Nos intervalos, samba de roda, capoeira, coco… banho de mar! Muita música e formas de dizer. Mesas sobre questões caras à mulheres, uma mesa sobre espiritualidade onde escutei fala similar a do Mirim, “nós somos a espiritualidade!” Podíamos almoçar um peixe incrível com marisco fresco por um valor super justo, bem mais barato que no Pelourinho, fortalecendo o povo local. Enquanto o encontro acontecia, as marisqueiras trabalhavam tirando seu sustento à beira-mar, as embarcações chegavam. O povo do mar ali pertinho de nós, vivendo…

Na quarta-feira, dia 1/2: a notícia de que não faríamos o cortejo na praia em que estávamos foi dada! O prefeito não permitiu. Precisávamos mostrar ao prefeito (sedento pelas terras do quilombo para fins de especulação/turismo) a força do território, caminhando até o território vizinho e lá fazer a entrega dos presentes. Foi muito forte. Já tinha sentido de entregar minha amiga Clarice pra Iemanjá. Eu não preciso de mais nada. Só agradecer. A vida é tão generosa comigo! E minha irmã de comunidade, por telefone, me lembrou: não deixe de entregar sua amiga. Dias antes, a irmã de Clarice me mandou em três palavras a profundidade de tudo que vivi nesses quatro anos de amizade: “Jesus recolheu Clarice.” Aquela dor tão doída ressuscitou na profundidade do colo de mamãe Iemanjá.

Senti a importância do rito. O fato de caminharmos à beira-mar por meia hora, depois a gira, a capoeira, o batuque, para então entrarmos nas embarcações e cantarmos mar adentro. “Minha jangada vai sair pro mar…” Neste e em outros momentos de mesa essa música foi cantada! Fomos até lá dentro do mar. Onde já tinha encontrado meu coração. Água de cheiro pelo ar, batucada, preces, presentes, pedidos e agradecimentos. Pulamos dos barcos para comemorar: é bom demais se sentir amado.

Senti que, feito os movimentos das ondas do mar, muita coisa se rearranjou dentro de mim. Minha luta é por terra e território, colada com as mulheres, as Clarices… até que eu reencontre a minha.

Como disse antes, estávamos em mais de mil. Todos acampados. Todos com a divisão de trabalhos muito atenta. Cozinhas e escalas nos permitiram cozinhar para nós mesmos, pratos e garfos nossos e uma alimentação incrível! Na cozinha em que contribuí em um café da manhã e um almoço era misterioso o movimento! Bem Viver! Os alimentos iam chegando junto com as caravanas! Era na hora que olhávamos o que havia disponível. Gil e Edu organizavam a cozinha de um jeito aberto e calmo. A todo o momento perguntavam, pediam participação, aceitavam sugestões. Faltando uma hora para as pessoas comerem, meu coração se exaltava. Não vai dar tempo, não há comida para todos. Besteira. Ou melhor, “proooonto”. Se a comida acabasse, logo se iniciava o cozimento de nova. O tempero descentralizado dava um sabor especial. Criatividades em conexão. Sabores e saberes presentes. Todos comiam, elogiavam, lavavam seus pratos. E o bioma saudável de Conceição agradecia o tanto de lixo que não estávamos produzindo, vida longa à mariscada e às marisqueiras!

As crianças também eram cuidadas coletivamente. Sinal de que as mamães poderiam ser felizes! Uma tenda de autocuidados funcionava ao longo do dia! E todos contribuíam em tudo. Falando em saúde, em nossa caravana (estava de penetra na caravana de Pernambuco), houve um momento tenso e de transformação. Nzinga honestamente abriu seu coração em roda e falou do sentimento de opressão e racismo que estava sentindo ali, na nossa caravana por parte de uma outra pessoa. Meus olhos se abriram! Que jovem incrível é Nzinga, do Sítio Agatha (Recife). Sua mãe é liderança de lá, uma mulher forte. Nzinga está na academia, “não queria, mas para jogar na cara nosso saber.” Em dado momento, Nzinga me pediu que levantasse uma questão dela em roda. Uma mulher preta furando as barreiras com sabedoria! Mas também de minha parte um profundo sentimento de tristeza de que eu precise ser intérprete da dor alheia para que o movimento se faça. Andei pensando sobre como colocar nosso privilégio a serviço, uma pista que a própria Nzinga me deu antes, durante um banho de mar. Iolanda e a Cacique Gracilda também estavam tristes com o preconceito sofrido e poder se abrir e sentir isso um pouco mais de perto é também pensar junto soluções. Nzinga não precisou sair do evento. Um outro corpo, que não o preto, se colocou na linha de frente.

Nas mesas, quero ainda destacar o trabalho do cacique Payayá e sua companheira na revisão bibliográfica sobre violência doméstica! Uma fala humilde e cheia de coragem! Quero destacar a presença dos anciãos! Esse cacique tem mais de 70 anos. Mayã, uma cacique referência que tem mais de 80 aproveitou para lançar seu livro! Iniciou sua fala com um canto. Em algumas mesas, as aberturas aconteciam primeiro com o chamado dos seres espirituais! Muito forte.

Por fim, fico com o relato emocionado de Jucelino sobre o fato de homem ter produzido tantos artefatos que ele acredita só ter sido possível com a observação das abelhas. Seu amor por elas. Um guardião orgulhoso e com muito conhecimento no assunto. Lembro de nossa conversa onde ele se emocionou muito dizendo que a vida sempre foi de sofrimento e que esse tipo de evento deixava ele cheio de força pra seguir a luta.

Foi assim que eu saí!

Foi coisa demais aqui dentro. Estou deixando que as águas se acalmem pra decantar tudo. Por enquanto, é isso.

Por Mariana Freire Lopes, nem 5 de fevereiro de 2023, nnoite de lua cheia.

Vejam um dos vídeos da Teia dos Povos – Na comunidade pesqueira e quilombola Conceição de Salinas –https://fb.watch/j8QEBhailk/

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