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A escuta das comunidades locais

E então, caminhamos mais um pouco em nosso tema do III ENJEL – Saberes, sabores e lutas: territórios do Bem-Viver. Para isso, estamos falando de três desdobramentos se revelam pouco a pouco, e persistem como inspiração, respiração e caminhos comunitários e locais: a relação tempo-espaço, a escuta das comunidades locais e a mística que brota do caminho.

A escuta das comunidades locais é nosso segundo desdobramento. Se, de muitas formas estamos apartados da natureza e sua gama de relações, precisamos nos aproximar daqueles que não se afastaram e, com eles, dialogar, nos deixar conduzir e orientar humildemente.

A crise provocada pelas escolhas da modernidade está tão potente que não se pode mais frear a devastação, a exploração da mãe Terra e também o grito que vem da própria humanidade, desde os mais pobres, mas já atingindo todo o sistema. Contudo, muitos pensadores já apontaram que a história não se modifica desde aqueles que estão no topo, ou nos processos governamentais e administrativos oficiais, mas sim, desde aqueles e aquelas que estão nas bases, nas comunidades locais. Neste caso, trata-se da escuta dos povos originários e das comunidades que mantém suas tradições nestes referenciais, ou seja, a voz é dos povos originários, dos “sujeitos históricos cujos vínculos com a terra e a natureza não estão quebrados, mesmo apesar de todo o sofrimento histórico, do despojo e da destruição da natureza”. (MARTINEZ, 2010)

A escuta das comunidades é uma aproximação não apenas da interação oral, mas das práticas, visões de mundo e significados. São trocas simbólicas capazes de retomar as raízes e a seiva que vai nutrir novas práticas, novas visões de mundo, novos significados. São muitas as linguagens presentes na semeadura do Bem Viver. Enquanto sociedade moderna, muitas vezes valorizamos apenas os atos discursivos, mas a interação comunicativa abraça muitas outras dimensões.

O Bem Viver aponta para outras direções, mas, para vislumbrá-las, são necessárias novas formas de comunicação. Essa escuta atenta é também uma reverência à sabedoria presente e potente em cada comunidade que mantém suas tradições de bem viver. Estamos aqui alertando para o fato de que o Bem Viver não pode ser reduzido a uma alternativa socioeconômica, nem mesmo a uma luta política, como se fosse uma colagem de boas práticas. Não é um conjunto de receitas culturais, sociais, ambientais e econômicas. Se tentarmos alguma espécie de adaptação do Bem Viver aos modelos socioeconômicos e culturais vigentes no mundo ocidental, estaremos nos apropriando indevidamente dessa inspiração.

Se desejamos gestar uma nova economia, esta se dará a partir da escuta e aproximação. E o que compreendemos como economia? Será a mesma compreensão que brota do Bem Viver? Uma economia não na direção desenvolvimentista, mas no sentido de relação de comunhão e cuidado com a grande casa, com a mãe terra. Algumas chaves emergirão dessa escuta, como a responsabilidade, a integralidade, a comunhão, a fraternidade cósmica, a partilha. As bases de toda essa gestão serão a própria relação comunitária local: uma economia em rede, em rede relacional com a natureza e em redes com as comunidades entorno.

Percorrendo esse caminho profundo e fecundo, poderemos sentir que o Bem Viver nos coloca na direção da comunhão, da amorosidade relacional e, com isso, na direção da gratuidade e da equidade. Por isso mesmo, muitos analistas irão indicar o Bem Viver como anticapitalista, antidesenvolvimentista, como decrescimento, como desglobalizante. Sim, é tudo isso, mas é muito mais. Talvez ainda não encontremos novas palavras para nos falar desses significados a serem descobertos, ou redescobertos, já que também são resgates de sabedorias fontais. Como nos alerta Pedro Ribeiro, nessa perspectiva há uma mudança nos modos de produção e consumo: “em vez de extrair-transformar- consumir-descartar, a economia passa a ser regida pelo princípio do respeito à Terra.” (RIBEIRO, 2019, p. 50 )

Estamos diante de uma nova linguagem, regida pelas relações harmoniosas e, por isso mesmo, ética, cuidadosa, responsável. É uma linguagem na qual a liberdade caminha de mãos dadas com a grande comunidade que integra todos os seres da mãe terra. Nessa linguagem-prática, não cabe explorar, derrubar, violar. Não cabe ouvir o clamor de quem sofre sem sentir e se responsabilizar. Não cabem prazeres à custa de qualquer violação que seja, natural, ambiental, humana, cósmica, espiritual. E quem oferece esse termômetro, que estamos chamando de ética, é o princípio que tudo dinamiza e nos integra.

Nesse desdobramento é importante estarmos atentos ao grito que nos chega das próprias comunidades, como sinais e/ou focos de resistência, como nos alerta Francisco Aquino. (AQUINO JR, 2020) Estas devem ser as primeiras a serem ouvidas. O economista equatoriano Pablo Dávalos nos alerta para uma escuta solidária e responsável:

A noção do Sumak Kawsay quer tornar a sociedade responsável pela maneira através qual produz e reproduz suas condições de existência, a partir de uma lógica marcada pela ética, na qual as situações particulares formam o interesse geral, e o bem-estar de uma pessoa não se constrói sobre os demais, mas sim baseado no respeito aos outros, isto é, meu bem-estar pessoal depende do bem-estar dos demais. (DÁVALOS, 2010)

Em tempos em que a terra e todas as suas criaturas clamam por amorosidade, o Bem Viver é uma convocação para todos nós. Implica a cada um de nós porque não há quem esteja fora desse sistema complexo. Ao nos darmos conta de que o sistema socioeconômico que estamos vivendo se tornou um sistema de morte, aqui reside uma convocação para novas escolhas, novas formas de viver e de ser, uma nova economia que assegure a vida entre todos os seres, sem prejuízo de nenhuma de suas dimensões. Sendo assim, a ética solidária e responsável também exige respostas proféticas sempre que a Mãe Terra e seus filhos e filhas são violados. A fim de apresentarmos alguns exemplos, significa sermos solidários e atuantes nas lutas para “cancelar toda obra que lhe cause danos graves, como a grande mineração, as grandes barragens, a produção de energia nuclear, o uso de venenos agrícolas e os alimentos geneticamente modificados”. (RIBEIRO, 2018, p. 50)

Rosemary Fernandes da Costa e Eduardo Brasileironn,O Bem Viver: caminho para uma mística libertadora. In: GUIMARÃES, E., SBARDELOTTI, E. e BARROS, M. ,50 anos de Teologias da Libertação. Memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Recriar, 2022nn

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