Trajetória de ser vivendo: LGBT*

Alexya Salvador e Ana Ester Freire**

Conhecer o nome da divindade sempre foi um desejo do ser humano. Aquilo que ele não nomeia, ele não conhece. A ideia de dar nome já aparece no início da narrativa bíblica, indicando que uma relação se aprofunda quando se nomeia ou se conhece o seu nome. O texto da Criação conta que “depois que formou da terra todos os animais do campos e todas as aves do céu, o Senhor Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gênesis 2, 19 NVI).

A leitura da narrativa da Criação pode nos levar a pensar que a primeira coisa a qual Deus deu nome foi ao dia e à noite (Gênesis 1, 4); entretanto, antes disso, Ele disse: “haja luz” (Gênesis 1, 3). Ele conhecia o nome da luz e tinha domínio sobre ela. O desejo por conhecer o nome implica, muitas vezes, no desejo por dominar o que se nomeia. “Adão deu à sua mulher o nome de Eva, pois ela seria mãe de toda a humanidade” (Gênesis 3, 20). Ele dá nome e designa seu destino. Ele dá nome e a domina. Assim, o desejo humano por conhecer o nome de Deus pode não ser apenas para conhecê-lo, mas pode tender também ao desejo de dominação, de controle. Quem conhece o nome de Deus com ele estabelece uma relação, o invoca, solicita, reivindica a sua presença e suas bênçãos.

YWHW: qual é seu nome, Deus?

A narrativa bíblica de Êxodo trata sobre a libertação do povo hebreu, que fora feito escravo pelos egípcios. A história conta que Deus levantou um líder entre eles, que tinha a missão de libertá-los e levá-los à Terra Prometida. Moisés era seu nome. O encontro de Moisés com Deus dá-se por meio de uma sarça ardente: uma planta que queimava e não se consumia. Moisés, intrigado ao ver o que acontecia, chegou mais perto, quando ouviu seu nome sendo chamado. Prontamente fez o que lhe fora pedido, retirando as sandálias de seus pés em reverência à terra santa a qual pisava. Deus, então, inicia com Moisés uma conversa que mudaria seu destino, dando a ele uma missão e um propósito para cumprir, o de libertar o seu povo do Egito. Moisés, receoso, sabia que não poderia fazer isso em seu próprio nome, por isso pergunta: “Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus de seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’ Que lhes direi?” (Êxodo 3, 13 NVI). Moisés sabia que estava diante da presença do divino, a sarça queimava e não se consumia, o solo era sagrado, seu nome era sabido, sua história era conhecida. Todavia, ele se sentia extremamente inseguro para cumprir a missão que estava recebendo, e desejoso de conhecer melhor Aquele com quem estabelecia uma relação. Ele pede, então, pelo nome daquele que o enviava, e, agregado a esse nome, seu significado, enfim, o que ele representava.

Deus então lhe responde: “Eu sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu sou me enviou a vocês” (Êxodo 3, 14 NVI). A palavra hebraica para o “Eu sou” é YHWH (consoantes transliteradas do alfabeto original). Muito já se foi dito e escrito sobre esse conhecido tetragrama. É assim que Deus se apresenta, como o YHWH. Sua identidade está ali, traduzida entre as quatro letras, impronunciáveis para alguns, indizíveis para outros. O poder daquelas letras juntas está em nomear a divindade, em traduzir em palavra o que Ele é. Além disso, o fato de não ser pronunciável, nos remete ao mistério da Revelação, ao processo pedagógico e amoroso do diálogo entre “Eu sou” e cada ser humano.

LGBT: qual é meu nome?

O livro de Êxodo tem, na produção teológica recente, sido um lócus privilegiado para o encontro da vida com as narrativas de libertação. A Teologia da Libertação, a Teologia Feminista, a Teologia Negra, todas encontram ali releituras de sentido para esperança em meio às questões sociais, de gênero e raciais. Com a Teologia Queer,[2] não poderia ser diferente. As pessoas sexo-divergentes da norma heterossexual e cisgênera apropriam-se, também, da narrativa de Êxodo na busca por uma teologia que dê voz não somente à sua corporeidade, como também à sua sexualidade.

O Êxodo fala de liberdade, fala de uma caminhada rumo a uma promessa. É assim que as pessoas LGBTs têm vivido e resistido, buscando a liberdade, caminhando rumo a um lugar seguro na qual possam provar do leite e do mel, ou seja, deliciarem-se com o que há de melhor. A delícia de ser quem somos implica em um Êxodo diário. Começamos nossa caminhada quando abrimos as portas de nossos armários, que sugere uma revelação do que há de mais privado em nós – nossa intimidade. Esse é o primeiro passo da jornada, que requer de nós coragem e abertura para não somente nos assumirmos como somos, como também acolhermos em amor o que somos. 

É na caminhada do Êxodo que vamos nos descobrindo, nos revelando, nos transicionando. Um trajeto árido, impossível de ser percorrido na solidão, requerendo de nós o apoio em uma comunidade sadia.

YHWH LGBT: eu sou o que sou

Por muito tempo, a comunidade LGBT foi excluída não apenas do fazer teológico, mas da vida comunitária da igreja. Entretanto, depois da ascensão dos movimentos identitários (de mulheres, de negros, de gays) já não era mais possível conter o desejo real dessas pessoas em buscarem em Jesus, o Cristo, um reservatório de sentido para a vida, mesmo afirmando em seus corpos o desejo repugnado pela maioria da sociedade.

Em uma disputa pelas Sagradas Escrituras, afirma-se que Jesus não é um evento somente de cristãos ou da cristandade, é um evento da humanidade, símbolo da entrega sem reservas motivada pelo amor. Identificar-se como LGBT e cristã é um exercício diário de resistência não somente contra aqueles que se auto-intitulam os detentores legítimos da fé, como também resistência contra nossa própria moral, que nos ensinou por séculos que nossos desejos são abomináveis aos olhos de Deus.

Assim, em um exercício de resistência, de enfrentamento, ousamos nos apropriar de passagens bíblicas que contribuam para a afirmação de nossa identidade. Seguimos desconstruindo os “textos de terror”, suspeitando do “está escrito”, re-situando e re-significando cada versículo em um trabalho hermenêutico de ser vivendo. Moisés perguntou o nome de Deus, e nós também perguntamos: “Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus de seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’ Que lhes direi?”. Deus então lhe responde: LGBT. É isto que você dirá aos israelitas: LGBT me enviou a vocês.

Para nós o nome de Deus também é LGBT. Nosso tetragrama traduz o nome que damos ao Sagrado. Traduz a relação de identificação que, finalmente, alcançamos em nosso relacionamento com Deus. Uma afirmação como essa demorou muito tempo para ser alcançada. Em pleno século XXI, ainda custa tanto nos apropriarmos da intimidade de um relacionamento pessoal com Jesus, o Cristo. Os discursos de ódio que nos cercam impedem que muitas de nós assimilem sua própria participação no Reino de Deus.

Continuamos sendo excomungadas e queimadas por não abrirmos mão de nos afirmarmos cristãs e lésbicas, cristãs e transgêneras. Mas, é no meio da excomunhão e do fogo das fogueiras que entendemos o valor de nossa corporeidade e de nossa sexualidade. Como a mulher cananeia, narrada pelo Evangelho de Mateus (15, 21-28), nós não aceitamos não como resposta. Nos ajoelhamos, comemos das migalhas, mas não desistimos. Nossa insistência permitiu que abríssemos igrejas, que fundássemos denominações, que ordenássemos líderes eclesiásticas, que produzíssemos teologia.

Em junho de 2018, um impactante e admirável comentário do papa Francisco repercutiu amplamente. O chileno Juan Carlos Cruz, vítima de abuso sexual por um sacerdote, foi recebido pelo pontífice, com quem conversou longamente em particular. Francisco lhe disse: “Juan Carlos, que você é gay não importa. Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. Você precisa estar feliz como você é”. Este comentário de valor inestimável não se tornou um pronunciamento oficial, mas uma conversa particular do papa. Ao dizer “Deus te fez assim”, evoca-se a bondade da criação. Ninguém deve ter vergonha de ser quem é, de ser como Deus lhe fez. A nossa vida expressa o desígnio divino. Em nossa história também age o Espírito Santo, resgatando a autoestima, dando-nos coragem para enfrentar as muitas fobias que nos atingem, iluminando o discernimento e comunicando a força para o bem.

É a afirmação de quem somos, e de quem Deus é em nós, que permite a criação de caminhos de esperança mesmo em tempos tão hostis. Deus sou eu, Deus somos nós, Deus é nossa relação. YHWH é LGBT.

Eu sou a presença divina da luznEu sou, eu sou, eu sounEu sou a presença divina da paznEu sou, eu sou, eu sounPresença de luz, presença da paz, presença do amornEu sou, eu sou, eu sounnAquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1João 4, 7b)(Artigo publicado no livro organizado por Rose Costa e Felipe Rocha, A MÍSTICA DO BEM VIVER, BH: Senso, 2019)n

* Alexya é professora da Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo. Esposa de Roberto, mãe de Gabriel, Ana Maria e da Dayse, ambas meninas trans. Foi ordenada clériga pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana e foi a primeira travesti a adotar no Brasil em 2015. É co-fundadora da EIG – Evangélicas Pela Igualdade de Gênero; transativista e transmilitante dos Direitos Humanos.
* Ana Ester é mineira de Belo Horizonte, daquelas que gostam de queijo com goiabada e de teologia com libertação. Estudou muito, mas descobriu que o que forma a gente mesmo é o encontro. Por isso, tornou-se uma encontrista, pessoa que encontra com as margens e que é encontrada nelas.
Obs.: A terceira imagem nos remete à matéria da carta Capital – Os 10 ativistas LGBTs religiosos que vão ajudar você a fortalecer a fé – Alexya Salvador, Ana Ester, Cris Serra, Fábio Mariano, Jacqueline Chanel, Jean Tetsuji, Laina Crisóstomo, Rodney William, Sidnei Barrto, Thago Rosa. Cf. em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/os-10-ativistas-lgbts-religiosos-que-vao-ajudar-voce-a-fortalecer-a-fe/

[1] A sigla LGBT não mais contempla as pluridiversidades identitárias da comunidade sexo-divergente. Sabemos que LGBTQI ou ainda LGBTI+ seriam siglas mais adequadas à representação das minorias sexuais. Entretanto, optamos pela sigla LGBT para fins comparativos, como será demonstrado no decorrer do texto.

[2] “De maneira simplificada, poder-se-ia dizer que a “teologia queer” é um desdobramento das teologias gay e lésbica, tendo em vista as discussões acerca de identidade e subjetividade desenvolvidas em vários campos do saber desde a década de 1980, especialmente no âmbito das correntes pós-estruturalistas e pós-modernas. Mas, até mesmo pelos preconceitos estabelecidos com relação a estas correntes de pensamento, é preciso relacionar estas discussões também com as questões surgidas no âmbito dos movimentos sociais organizados a partir de questões de identidade (feminista, negro, homossexual). Por André Musskopf, em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/16519-viadagens-teologicas-itinerarios-de-uma-teologia-queer-no-brasil-entrevista-especial-com-andre-musskopf, acesso em 6 de fevereiro de 2019

[3] O espelho indicado, por ser de custo menor, é aquele retangular, de moldura laranja, muito usado no passado.

[4] Para referência da música ver https://www.youtube.com/watch?v=FQyFIf50FXQ.

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