No artigo Na direção dos territórios do Bem Viver: passos para nosso III ENJEL, trouxemos um primeiro passo para o horizonte temático que nos convoca. Agora seguimos um pouco mais…
Pensemos juntes sobre o que significa SER EM COMUNHÃO!nnO paradigma moderno nos identificou com uma condição com a qual estamos bastante ligados: a ideia de sujeito, de indivíduo. Conduzidos pelo Bem Viver, deixemos um pouco de lado essa dimensão que se tornou tão preciosa na modernidade, e caminhemos para inter-relação, para a compreensão da dialogia presente em todos e em tudo.
A primazia da comunidade sempre foi o coração nas teologias da Libertação. Nas comunidades se encontram as utopias que alimentam as lutas e esforços para transformar tudo que fere a humanização e a terra. “A Teologia da Libertação sempre nos ensinou que não há duas histórias e nos ajudou a superar os dualismos nos quais fomos formados.”(BARROS, 2019, p. 212)
O convite que vem dos povos originários provoca uma desconstrução de alguns conceitos
internalizados e próprios de nossa linguagem que embasaram a reflexão e ações pastorais e comunitárias em tempos modernos com, por exemplo, o conceito de indivíduo como separado do conceito de comunidade. Ao nos darmos conta de que estamos em uma imensa e complexa rede de relações, o conceito de pessoa, de indivíduo, ganha um novo e revolucionário lugar. Aqui também reside um caminho libertador.
A rede relacional nos fala de interdependência, de interligação, de dialogia intermitente, de alteridades. Para os povos originários, a terra é sujeito, e não objeto. Estamos diante da experiência das intersubjetividades, da circularidade relacional, de saberes que vêm e vão através da dialogia. Antes mesmo da virada do milênio, o teólogo João Batista Libanio já sinaliza que o conceito de subjetividade dava novos passos de dentro do próprio paradigma que o havia tornado central. Além de apontar o caráter particularista e até exclusivista dessa visão de pessoa, ele diz que experiência de superação dos limites da individualidade está na raiz da experiência judaico-cristã. Ainda lembra que a subjetividade não é construída a priori, ela tem um contexto, é historicizada, é inter-relacional. (LIBANIO, 2000, pp. 43-44) Vale à pena a referência completa dessa reflexão:
Podemos dizer que as quatro relações fundamentais do ser humano consigo, com os outros, com a natureza e com o Transcendente modificaram-se radicalmente. Em relação a si, ele se entende muito mais como um ser-relação que como uma subjetividade plantada em si mesma. É uma razão antes inclusiva, comunicativa, dialógica, intuitiva, criativa que analítica, objetiva, absoluta, logocêntrica, instrumental, práxica.
A sociabilidade passa por uma nova percepção do jogo entre as individualidades pessoais e grupais, articuladas em rede, e a globalização uniformizadora, hegemônica, triunfante. O cosmos deixa de ser um lugar de puro objeto, quer de manipulação, quer de pesquisa, para aparecer como uma gigantesca totalidade de que o ser humano é uma parte, em busca de harmonia com ele.
Ele é parte do universo como o universo é parte dele. O Transcendente é visto em sua ultima realidade de mistério, abrindo as religiões para amplo diálogo em torno do bem para toda a humanidade. (LIBANIO, 2000, p. 54)
A ponderação de Libanio nos diz que já estamos a caminho de novas subjetividades, portanto, de novas relações. Não é tempo de desanimarmos diante das atuais interpelações, mas de encontrarmos nas fontes os sinais que nos animam. A dinâmica inter-relacional não é uma novidade, ela é um fundamento, uma fonte originária, ou seja, ela já está impressa em cada um de nós como uma dinâmica que traz consigo a gênese de muitas mudanças pessoais, comunitárias e, principalmente, históricas.
Com esse pressuposto voltemos para as comunidades originárias e vamos encontrar uma nova forma de pensar a relação identidade-pertença, pois é a ideia de comunidade que integra essa compreensão. Tudo é relação, é fruto de intersecções ininterruptas, de estruturas que estão conectadas, na verdade, como uma pluralidade de vozes, que faz com que cada ser seja um ser aberto, plural. Cada voz congrega muitas vozes, pois reúne as vozes dos antepassados, as memórias, os animais, o alimento, o cultivo da terra, os fenômenos naturais e espirituais. Para fazer uso de uma metáfora, diríamos que é como se cada ser fosse separado apenas por uma fina membrana, que separa e, ao mesmo tempo, é totalmente permeável e interseccional. Na linguagem filosófica, poderíamos dizer que estamos diante de um pressuposto ontológico e epistemológico. Todas as construções são coletivas, circulares, complexas.
Se tratando dessa pluralidade de vozes, é no coletivo que são partilhados os significados, avaliadas e repensadas as novas práticas. A ideia de circularidade hermenêutica é vivenciada como rito, como vida, como símbolo, como silêncio e como palavra. Todas as formas de expressão são consideradas e validadas como legítimas. Essa validação é interna à comunidade, pois vai depender desse conjunto de expressões que configuram a memória e o presente de cada comunidade.
Rosemary Fernandes da Costa e Eduardo Brasileiro, O Bem Viver: caminho para uma mística libertadora. In: GUIMARÃES, E., SBARDELOTTI, E. e BARROS, M. 50 anos de Teologias da Libertação. Memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Recriar, 2022